Thursday, January 26, 2006

A Ca(u)sa de Garrett.


EXERCÍCIO DE PASSAMENTO
um texto de Guilherme d’Oliveira Martins

I. José-Augusto França acaba de publicar uma obra que merece atenção. Falo de Exercícios de Passamento (Acontecimento, 2005). "Toda a gente morre de paragem do coração, mas uns morrem mais do que outros, não tanto porque da lei da morte se libertem os mais célebres, mas porque têm modos diferentes de passamento, sempre individualizados e conforme viveram, fizeram, sofreram e amaram, e também consoante a causa mortis, natural ou acidental, involuntária ou mesmo voluntária". Os cinquenta exercícios de passamento, longe de ser depressivos, constituem oportunidade para reflectir sobre a vida. Diz-me como morreste, dir-te-ei quem foste. Eis a moral destes textos. São exercícios em que a imaginação e a realidade se encontram e que permitem perceber cada um dos retratados. Vinte cinco poetas e escritores, dez artistas, sete reis (um dos quais, D. Pedro IV, faz capa, ao lado de D. Maria de Glória e do futuro Duque de Saldanha, também apanhados na teia da obra…) e oito políticos ou afins, eis o que encontramos. E à hora da morte como que há uma rápida revisão da vida. São, assim, cinquenta apontamentos de referência biográfica, de poder e de desgraça, de glória e de ilusão. Garrett despede-se triste da casa desejada. D. Pedro V pergunta: "quem havia de querer um César liberal para este povo adormecido, cego, obstinado nos erros que vinham de tão longe?". Herculano preocupa-se com uns quantos mil pés de vinha em Vale de Lobos. D. Fernando II fala de um divertido "pequeno Portugal". Césario pede que o deixem dormir. Fontes quase se imagina Santo António de altar. Soares dos Reis, Camilo e Antero são sacrificados na Ara do talento. António Nobre volta em sonho à Torre de Anto, onde "nem uma semana lá morara". Eça vê as tílias do jardim, que as "janelas abertas de Agosto" deixam mostrar. Mousinho de Albuquerque diz que as luvas já não lhe fazem falta. Rafael Bordalo Pinheiro, "acanichado", pede "lume a outro ele". Ramalho não se verga "à estupidez cava dos seus patrícios". Mário de Sá Carneiro "não ia mais escrever ao Fernando, nem a ninguém". Amadeo revolta-se: "a gripe espanhola, dois tios mortos já, e três primos – mas porquê ele?". Sidónio não tem tempo de pedir senão que salvem a pátria. Gomes Leal, em delírio, diz: "Agora quero ir-me embora". O pensamento de Junqueiro dilui-se paradoxalmente no Além desejado. Columbano pede para "irem ver-lhe as pinturas no Parlamento como acto cívico necessário", mas impossível por causa da ditadura. Pessoa pede "não mais luz, não um palito, mas entre uma coisa e outra, os óculos…" Teixeira Gomes já pode receber as amigas que inventara, Sabina Freire ou Maria Adelaide, no lindo cemitério de Bougie. Pascoaes morre "poeta de sempre". Almada louva a "luz, a luz tal e qual". Salazar suspira e pensa em Santa Comba. Jorge de Sena usa a sua lucidez até ao último momento. E o autor acrescenta ainda um ignoto, cheio de ironia, em nome da intemporalidade e do riso.

II. Garrett morreu saudoso da casa que escolheu para morrer. Recorda-o José Augusto França, disse-o Francisco Gomes de Amorim numa obra essencial (Garrett – Memórias Biographicas, Imprensa Nacional, 1881 a 1884). Lembramo-lo nós, no momento muito triste da demolição da última casa do autor de "Viagens na Minha Terra". Ao ler Amorim e J.-A. França, percebe-se ainda melhor como houve indiferença e insensibilidade em relação à memória de um dos nossos maiores. Mais do que dinheiro, o que faltou foi inteligência para encontrar uma solução digna. E se seguirmos o percurso de Garrett na biografia, notamos a cada passo a grande sensibilidade que teve relativamente à memória dos nossos maiores e às nossas raízes. Agora houve ingratidão. E quanto enlevo encontramos no testemunho do amigo dilecto de Garrett sobre a instalação na Rua de Santa Isabel… No final de 1853, Garrett encontrou uma casa que estava a ser construída, a Campo de Ourique. Era uma moradia elegante, com um pequeno jardim, em frente do cemitério inglês. Um lugar romântico por excelência.

O poeta gostou muito, foi amor à primeira vista. Arrendou-a. E enquanto aguardava pelos acabamentos, que seguiu com grande cuidado, transferiu para lá os seus móveis da Rua do Salitre e foi morar provisoriamente, em Junho de 1854, para a Rua Direita da Junqueira, na casa do Marquês de Angeja. A sua filha Maria Adelaide estava então no Recolhimento das Salésias. E o escritor escreveu-lhe sobre a nova casa de Santa Isabel: "Quando a arranjar cuidarei também do teu quartinho que será o melhor da casa, o próprio para uma senhora como tu hás-de sair daí". Foi o próprio Garrett que dirigiu a mudança dos móveis do Salitre para Santa Isabel. Gomes de Amorim acompanhou-o. Dormiram nas águas furtadas, mas o calor excessivo levou-os a regressarem à Junqueira. Quando se instalou a biblioteca da nova casa, Garrett ficou tão entusiasmado que ofereceu um almoço, frugal mas luzido, aos seus amigos mais íntimos – Mendes Leal, Rebelo da Silva, Rodrigo Felner e Amorim. A refeição terminou por volta do meio-dia, e Garrett, em frente da Igreja de Santa Isabel, disse a Mendes Leal: "Isto abriu-se, mas não se abriu, tal como o teatro Agrião" (que era a alcunha que Castilho tinha posto ao Teatro Nacional, por ser construído sobre estacas). "Inaugurou-se e não se inaugurou. Portanto, ficam todos intimados para comparecer, quando se abrir outra vez a valer, com o cenário armados nos seus lugares. A peça nova há-de ser mais bem escolhida: em vez de modesto almoço, haverá jantar, não direi pantagruélico, porém suficiente e mais abundante em líquidos correspondentes. O empresário espera e confia que os senhores do público lhe não faltem com a sua presença".

O sítio era para Garrett de eleição. Houve até quem falasse de premonição romântica pela proximidade do cemitério. Um dia, aliás, foi com Amorim visitar, de fronte de casa, o túmulo do grande romântico Fielding (o autor de Tom Jones, falecido em Lisboa a 8.10.1754) no Cemitério inglês… E quando o biógrafo começou a ler a inscrição da campa, Garrett interrompeu-o e disse que tudo era falso, a verdade era que Walter Scott o cognominara de "pai do romance inglês". E mais do que isso, fora o pai do romance moderno – apesar da ingratidão humana que deixara mulher e filhos na miséria. Tanto bastava. E deu meia volta: "Vamos ver as minhas obras e fique advertido de que vou ser vizinho deste ilustre defunto". E estava muito satisfeito. No entanto, a doença do peito de que Garrett padecia agravou-se. Mesmo assim, continuou a fumar. Arrastavam-se, porém, as obras de Santa Isabel ("O diacho é a casa", repetia). E os médicos insistiam na necessidade de rápida mudança. Podia haver perigo pelo eventual cheiro das tintas? O médico assistente, Dr. Barral, vai a Santa Isabel e diz que não… A mudança fez-se, mas o escritor, que preparara a casa com grande entusiasmo, sente agravada a sua saúde. Morrerá naquela casa, que agora é destruída. Ao ler estas memórias, completadas pela leitura de um outro texto fundamental da autoria de Ofélia M. C. Paiva Monteiro, A Formação de Almeida Garrett. Experiência e Criação, Coimbra, 1971, e pela biografia de José Calvet de Magalhães, Garrett. A Vida Ardente de Um Romântico, Lisboa, 1996, sentimos dó por este irreversível acto… E basta citar Gomes de Amorim: "A casa onde morreu Garrett, e a mobília que foi dele, podiam e deviam conservar-se como a nau ‘Vitória’, se nós, que macaqueamos tudo, imitássemos também os exemplos dignos de admiração e do respeito dos povos cultos" (III, p. 619). Eis como se ilustra o mais triste dos exercícios de passamento…
[Texto reproduzido com a devida vénia ao seu Autor]

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