Friday, March 03, 2006

Casas de escritores (36)

A casa. (...) Centro de convergência da união do sangue, ela fechava-nos no seu abrigo, impregnada da nossa história, do que em nós foi alegria ou amargura ou esperança, envolvia-nos de protecção no que em nós não morre de infância até à idade adulta ou da velhice. Entrar em casa, fechar a porta e encontrar uma segura defesa contra tudo o que nos agrediu. Nela encontramos o repouso para a fadiga do corpo e da alma. Entrar em casa é reencontrarmo-nos connosco, a nossa pessoa de que nos tínhamos perdido. É sobretudo estar alguém connosco, mesmo que não esteja ninguém. Porque a casa tem uma alma. Ela cria-se com o que de todos os que nela são ou foram, se depositou nas salas, nos móveis, em todos os objectos. É por isso que entrar numa casa vazia e alheia é sentir logo uma saturação de presença, de qualquer coisa animada. Eis porque nos perturba a mudança dos móveis que a nossa mulher entendeu dever fazer. Porque isso é um atentado contra a pessoa da própria casa, a alma que era sua e nós conhecíamos.
Mas hoje a casa desfez-se. A casa aprende-se devagar e já não há quem a ensine.
Vergílio Ferreira (1916-1996)

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