Wednesday, March 22, 2006

Os últimos dias de Garrett (1)

Francisco Gomes de Amorim nasceu em A Ver-o-Mar (Póvoa de Varzim), em 1827, e aos dez anos de idade emigrou para o Brasil, de onde só regressaria em 1846, depois de uma dura experiência. Foi poeta, romancista e dramaturgo, mas a descoberta de Garrett – da obra e do homem – foi talvez o grande acontecimento da sua vida. Foi amigo e secretário do poeta, e a essa devoção dedicou as suas monumentais Memórias Biográficas, publicadas em três volumes entre 1881 e 1884. Gomes de Amorim veio a morrer em Lisboa, em 1891.
O texto que passamos a apresentar foi publicado no Archivo Pittoresco, vol. 3, e é um excerto seleccionado da última parte das Memórias. Nele, Amorim descreve os últimos dias de Garrett. Ouçamos:

«Depois de um outono frio, enevoado, ventoso e triste como o mais feio e triste inverno, apreceu o sol sem nuvens no dia 9 de Dezembro. Mas o ano de 1854 sentia-se morrer. O sol d’esse dia não tinha calor; o azul do céu era sem brilho, não cantavam as aves, não havia flores na terra nem folhas nas árvores; a natureza inteira parecia insensível ou desfalecida. Dir-se-ia que anunciava ao ano a ‘primavera da morte.’
Um raio de sol, pálido e ameno, coado pelos ciprestes fronteiros às janelas, penetrou na alcova do poeta moribundo. Durante um mês o seu estado seguira todas as alterações da atmosfera. O calor do fogão, que estava aceso noite e dia, para graduar a temperatura do quarto, não modificava nem levemente as desagradáveis impressões que as variações do tempo lhe causavam. Os dias ventosos irritavam-n’o, os nevoeiros oprimiam-lhe o coração, o ruído da chuva trazia-lhe não sei que vagas memórias do passado, que o enchiam de tristeza e de saudade. Este estado, porém, era o menos duradouro. Quando o vento rugia açoutando furiosamente os vidros das janelas, era costume seu dizer em ar de graça: "Como ela zôa na carvalheira! Cá me dizem os meus nervos que vai tudo raso lá por fora."» (continua)

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