Thursday, March 23, 2006

Os últimos dias de Garrett (2)

Os acessos de melancolia vinham-lhe nos poucos momentos em que se via só, e abandonavam-no logo que alguém aparecia. E, coisa rara! no meio das maiores angústias nunca lhe faleceu o ânimo! O seu espírito foi sempre superior ao padecimento. A propósito de cada grito que este lhe arrancava, citava uma anedota engraçada, fazia uma comparação histórica, ou descrevia comicamente o seu estado.
Era realmente um talento e um homem único!
Quando lhe perguntavam como estava, se a pergunta vinha de pessoa familiar, respondia: «Quase como S. Lourenço; não me resta por queimar senão uma costela, que deve ser a de S. Gonçalo.» (1)
Todos os que o trataram se lembram da graça inimitável com que ele contava; imaginem pois, pois, a grave fisionomia do autor de Camões e D. Branca, contraindo-se de vez em quando por dores intensíssimas, enquanto a boca ri e descreve, com infinita viveza de engenho, o estado do corpo macerado pela cama e coberto de cáusticos! A facécia ora se suspendia de todo com alguma dor mais aguda, ora continuava misturada de gemidos e trejeitos, que tornavam mais cómico o espirituoso doente, e lhe aumentavam a veia para novos chistes. Ouvindo-o, não podiam deixar de rir-se os que mais se compadeciam dele, e que mais sentiriam a sua perda, tida já por inevitável! Mas como não seria assim, se era ele o primeiro que parecia esquecer-se que o fim da sua existência parecia próximo?» (continua)

(1) A família dos Almeidas, que se uniu a Garretts, pretende contar entre os seus ascendentes o famoso S. Gonçalo de Amarante. Isto vai tratado largamente no livro d’onde se extrai o presente artigo.

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