Wednesday, March 29, 2006

Os últimos dias de Garrett (4)

A circunstância de ser eu a única pessoa que acompanhava mais assiduamente o doente, dava-me sérios cuidados; tomei por dedicação e reconhecimento aquele encargo, assaz doloroso para o meu coração, e sinceramente confesso que o teria resignado, se achasse em quem; mas não achei.
O meu estado de saúde era também pouco lisonjeiro, e o meu amigo Pulido, prevendo que ele se tornaria pior (como sucedeu), se eu presenciasse a morte de Garrett, me aconselhou a que evitasse um tal espectáculo. Mas nem o interesse da minha própria conservação, nem o desejo de declinar a responsabilidade que me cabia, por ter assumido a direcção e o governo de uma casa, cujo dono estava expirando, tiveram força para me obrigar a sair dali. Consultei parentes e amigos íntimos de Garrett, pedi que tomassem conta da casa, oferecendo-me para continuar à cabeceira do doente, que, pela amizade e confiança que comigo tinha, parecia comprazer-se com a minha companhia; fiz sentir a necessidade de se acautelarem certos objectos que andavam por mãos de criados; disse que estes não eram para mim isentos de suspeita, que se achavam alta noite certas portas abertas, e que eu não podia ser ao mesmo tempo guarda do enfermo e dos ladrões. Tudo foi inútil. Supliquei a várias senhoras, que pareciam tomar pelo moribundo alto interesse, que ao menos me arranjassem uma criada, a fim de ser despedida a insolente que havia em casa, e que não só deixava de fazer o serviço a tempo, mas insurgia-se quando por isso a censuravam; contei que, vindo eu um dia às duas da tarde, achara o grande poeta quase desfalecido, e perguntando-lhe se estava pior, me respondera: que não lhe tinham dado ainda nem um caldo desde o dia anterior; que procurando a criada, me disseram que tinha saído a negócios seus; e que, quando veio, sendo chamada ao quarto de Garrett e interpelada por este, pretendera justificar-se em tão descomposto berreiro, que ele me pedira, pelo amor de Deus, que a pusesse fora, dizendo-me depois que ela saíu: «Se a não põem na rua, mata-me.» (continua)

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