Os últimos dias de Garrett (8)
Foi na minha casa da travessa do Forno, naquela casa Dantesca tão amada do poeta, que os dois se tinham encontrado haveria pouco mais de um ano e meio. Apresentei Gonçalves, e ainda hoje me lisonjeio de o ter feito, pelos muitos e bons serviços que este excelente amigo e espirituoso conversador prestou depois a Garrett. A sua companhia sempre festejada, foi vivamente reclamada por mim na ocasião em que me vi mais só ao lado do enfermo; porém as suas ocupações prendiam-lhe os dias, deixando-lhe apenas libertas as noites, e essas, não só por pedido meu, como por sua própria dedicação, as consagrou sempre ao doente.
Com este excelente amigo, e como sr. D. Pedro do Rio, consultava eu, algumas vezes, acerca das providências que seria conveniente tomar quando chegasse o doloroso instante. Gonçalves, quando vinha à noite, abria discussão comigo, tomando por tema a primeira palavra que eu proferisse. Fazíamos isto de propósito para entreter o doente, que se animava, tomava calor connosco, e discutia também. Por momentos creio que todos três nos esquecíamos de que no fim dessa viva e algre disputação haveria de menos um grande espírito.
Garrett não podia já deitar-se; estava sentado na cama, rodeado de almofadas e travesseiros, em que descansava o corpo, encostando-se ora para um ora para outro lado. Estava muito magro, e um pouco desmaiado, mas sem fazer grande diferença da sua cor natural. Os olhos conservavam a limpidez e brilho que deviam ter tido aos vinte anos, no vigor da saúde e da mocidade. Nunca se queixou de outro mal senão do que dizia ter no pulmão, coração, ou fígado. Ele não sabia bem onde era a origem. Nunca teve uma dor de cabeça, e nos últimos dias da sua vida exclamava amiudadas vezes: «Hei-de morrer sem me doer esta cabeça! Nem uma leve impressão, uma dor instantânea, uma perturbação, nada!» Efectivamente nunca experimentou nela o mais pequeno incómodo. Somente nos três ou quatro últimos dias que precederam o da sua morte, sentindo-se extremamente fraco, não podia ouvir o ruído das seges que passavam pela rua. Mandei, para amortecer esse ruído, deitar ali algumas cargas de areia, depois de ter para isso pedido a permissão à câmara municipal, que a deu imediatamente, escrevendo-me o seu digno presidente uma carta cheia de sentimento. (continua)
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